quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sombra


do livro

A SOMBRA E O MAL NOS CONTOS DE FADA

de Marie-Louise von Franz




Antes de entrarmos em contato com o nosso material, devemos precisar com clareza a definição de sombra em psicologia, pois ela pode variar bastante e não é tão simples como supomos.

Geralmente, na psicologia junguiana, definimos sombra como a personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade que poderiam ser acrescentados ao complexo do ego mas que, por várias razões, não o são.

Poderíamos portanto dizer que a sombra é a parte obscura, a parte não vivida e
reprimida da estrutura do ego, mas isso é só parcialmente verdadeiro.

Jung criticava seus alunos quando estes se apegavam aos seus conceitos de maneira literal, fazendo deles um sistema, e quando o citavam sem saber exatamente do que falavam.

Numa discussão acabou por dizer: "Isto não tem sentido, a sombra é simplesmente todo o inconsciente". Acrescentou que tínhamos esquecido como essas coisas haviam sido descobertas e vividas pelo indivíduo e que sempre é preciso pensar na condição atual do paciente.

... Assim numa primeira etapa de abordagem do inconsciente, a sombra é
simplesmente um nome "mitológico", aquilo que me diz respeito mas que não posso conhecer diretamente....

Assim, numa primeira fase, podemos dizer que a sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa mas que ela desconhece. Geralmente, quando investigamos a sombra, descobrimos que consiste em parte de elementos pessoais e em parte de elementos coletivos.
Praticamente, nesse primeiro contato, a sombra é apenas um conglomerado de aspectos em que não conseguimos definir o que é pessoal e o que é coletivo.

.... Existem possibilidades opostas numa criança que não se harmonizam entre si. Geralmente, no decorrer de seu desenvolvimento, uma escolha é feita, de modo que um lado fica mais ou menos consolidado.

Sempre escolhendo uma qualidade e preferindo uma determinada atividade em detrimento de outra, através da educação e dos hábitos, estas acabam se tornando uma "segunda natureza"; as outras qualidades continuam a existir, só que debaixo do pano.

A sombra se constrói a partir dessas qualidades reprimidas, não aceitas ou não
admitidas porque incompatíveis com as que foram escolhidas. É relativamente fácil reconhecer esses elementos e é isto que chamamos "tornar a sombra consciente", através de uma certa dose de insight, com a ajuda de sonhos e assim por diante — e é normalmente nesse ponto que a análise é interrompida.

Mas isto não significa o término de um trabalho, pois daí vem um problema muito mais difícil, diante do qual a maioria das pessoas encontra grande dificuldade: elas sabem o que é a sua sombra mas não conseguem expressá-la ou integrá-la em suas vidas.

Naturalmente a mudança não agrada às pessoas de seu meio, pois isto significa que elas também têm que se readaptar. Uma família ficaria simplesmente furiosa se um membro até então doce e cordato de repente se tornasse agressivo, dizendo não às suas ordens. Isso conduz a muitas críticas e o ego da pessoa em questão também se ressente da situação.

A integração da sombra poderá não dar certo e o problema chegará então a um impasse.

É um ato de grande coragem enfrentar e aceitar uma qualidade que não nos é agradável, que se escolheu esconder por muitos anos. Mas se a pessoa decidir não aceitá-la, acabará sendo apanhada pelas costas.


Uma parte do problema é enxergar e admitir a existência da sombra, constatar que alguma coisa aconteceu, que algo irrompeu; mas o grande problema ético surge
quando se decide expressar a sombra conscientemente.

Isso requer grande cuidado e reflexão, para que não se produza uma reação perturbadora. Gostaria de lhes dar um exemplo disso.

Pessoas do tipo sentimento estão sempre prontas a serem cruéis e mesquinhas ao julgar seus amigos. Por um lado se sentem bem com as pessoas mas, por dentro e por trás, são capazes de ter pensamentos e julgamentos extremamente negativos a seu respeito.

Outro dia eu estava num hotel com uma pessoa do tipo sentimento. Eu sou do tipo pensamento e acontece que estava com uma tremenda pressa quando a avistei, de modo que apenas a cumprimentei rapidamente.

Daí ela achou que eu a odiava, que estava furiosa com ela e que não queria passar o dia em sua companhia, que eu era uma pessoa fria e insociável etc. De repente o tipo sentimento passou a ter pensamentos negativos, com toda uma explicação para o fato de eu tê-la cumprimentado apressadamente.

No estágio inicial a sombra é todo o inconsciente — um acúmulo de emoções, julgamentos e assim por diante. Vocês poderiam achar que minha amiga foi envolvida pelo pensamento negativo do ânimus — mas o que aconteceu realmente foi uma explosão de pensamentos negativos (neste caso a função inferior), emoção brutal (sombra) e alguns julgamentos destrutivos (neste caso o ânimus).


Se estudarem essas explosões negativas, vocês poderão distinguir entre a figura que chamamos de sombra e a faculdade de julgamento que na mulher chamamos de ânimus.


Depois de um certo tempo as pessoas descobrem essas qualidades negativas em si mesmas e conseguem não apenas vê-las mas expressá-las, o que significa abdicar de certas idealizações e padrões. Isso acarreta sérias considerações e uma boa dose de reflexão, caso a pessoa em questão não queira ter uma ação destrutiva sobre as coisas que a cercam.

Então, visto que podemos descobrir nos sonhos elementos que parecem não ser
pessoais, dizemos que a sombra consiste em parte de material pessoal e em parte de material impessoal e coletivo.

...

Se alguém vivesse sozinho seria praticamente impossível perceber sua própria sombra, pois não haveria ninguém para lhe dizer qual seria a sua imagem. É preciso um espectador. ...

.... A sombra coletiva também surge sob outra forma: quando em pequenos grupos ou sozinhos, certas qualidades nossas se reduzem, crescendo porém  repentinamente quando estamos num grupo maior.

Esse fenômeno compensatório típico ocorre com introvertidos retraídos que no
fundo desejam ser brilhantes, um grande personagem no meio da multidão.

Com o extrovertido ocorre o contrário.

Quando  sozinho o introvertido diz que não é ambicioso e que não se importa com isso, que não se envolverá em intrigas ambiciosas, que realmente será ele mesmo, satisfeito com sua introversão.

Basta introduzi-lo numa multidão onde haja extrovertidos ambiciosos e rapidamente ele estará contaminado pela infecção.


Isso é comparável à situação de uma mulher que corre a uma loja para comprar alguma coisa barata e outras mulheres vão correndo atrás dela e compram a mesma coisa; ao chegarem em casa se perguntam, surpresas: "mas, afinal de contas, por que comprei isto?"

Se alguém só sente ambição quando está em grupo, podemos dizer que aí se trata de sombra coletiva. Às vezes você se sente bem, interiormente, mas ao entrar num grupo onde o diabo está solto, fica meio perturbado, como aconteceu com alguns alemães quando iam aos encontros do partido nazista.


Refletindo em casa eles poderiam ser anti-nazistas, mas nesses encontros alguma coisa se acendia e eles ficavam, como alguém comentou, "como que possuídos pelo demônio".

Temporariamente eles foram dominados mais pela sombra coletiva do que pela pessoal.

O mal coletivo é ainda personalizado nos sistemas religiosos através da crença nos espíritos das trevas e demônios do mal. Uma pessoa da Idade Média voltando do tal encontro diria que tinha sido possuída pelo demônio e que agora estava livre novamente.

O próprio diabo exemplifica tal personificação da sombra coletiva. Por outro lado, podemos dizer que se os demônios coletivos nos afetam, é porque devemos ter algo deles em nós — caso contrário não nos afetariam e a porta de nossa psique não estaria aberta à sua entrada.

Quando partes de nossa sombra pessoal não estão suficientemente integradas, a sombra coletiva pode passar furtivamente por essa porta.

Consequentemente devemos estar conscientes da existência desses dois aspectos, porque este é um problema ético e prático capaz de causar enormes danos.

Suponhamos que um analisando se comporte de maneira ultrajante em grupo. Se tentarmos fazê-lo ver que a culpa foi sua, ele se sentirá oprimido e objetiva-mente isso não seria correto, pois em parte aí se encontra a sombra coletiva. Além disso, ele teria um grande sentimento de culpa. Existe uma espécie de norma
interior secreta, a respeito de quanto um ser humano pode suportar a sombra.


Não é saudável ignorá-la nem absorvê-la demais. Uma dose excessiva impede que a pessoa funcione psicologicamente. Quando alguém tem a consciência pesada,
deve então considerar um pouco mais a própria sombra; mas o pior é que geralmente não se distingue a própria consciência que fica embaçada quando se olha para a sombra muito de perto — e este é um problema muito sutil.

Estou me referindo a estes aspectos a fim de esclarecer o fato de que existe um aspecto individual e outro coletivo na sombra, a sombra do grupo. De certa forma, esta última consistiria na soma de todas as sombras individuais e seria algo que não perturba o grupo, sendo visível somente a grupos externos.

Em outras palavras, se reunirmos três ou quatro intelectuais típicos, com os mesmos interesses, eles dirão que passaram uma noite maravilhosa em discussões intelectuais, sem no entanto perceberem que entre si o contato humano foi ruim;
mas um simples camponês ali presente diria que a reunião foi horrível.

Quando todos têm o mesmo problema, tudo parece maravilhoso! ...

Este é o nível normal de consciência em indivíduos e também em grupos.

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