domingo, 20 de outubro de 2013

A pedagogia da escravidão nos Sermões do Padre Antonio Vieira

por Amarilio Ferreira Jr. e Marisa Bittar

na íntegra em pdf clicar aqui


  


...Diante da brutalidade desse regime social, o padre Antonio Viera não permaneceu insensível à dimensão do infortúnio, embora, contraditoriamente, buscasse justificá-lo.4

Eis, por exemplo, a alegoria que construiu para explicar o papel que o negro deveria desempenhar no âmbito do engenho: 


[...] não se pudéra, nem melhor nem mais altamente, descrever que coisa é ser escravo em um engenho do Brasil. Não ha trabalho, nem genero de vida no mundo mais parecido á Cruz e Paixão de Christo,que o vosso em um d’estes engenhos (Vieira, 1945a, v. XI, p. 309).

Para ele, em termos de sofrimento, o engenho era a cruz e o negro a própria imitação do Cristo mortificado que redimiu a humanidade do pecado original.

Mas, para Alfredo Bosi (1992, p. 148),

“a moral da
cruz-para-os-outros [sic] é uma arma reacionária
que, através dos séculos, tem legitimado
a espoliação do trabalho humano em
benefício de uma ordem cruenta”.

Além disso, no mundo real das relações de produção, o escravo do Brasil Colonial era apenas a engrenagem principal da máquina mercantilista que alimentou historicamente a acumulação primitiva do capital necessário à Revolução Industrial do século 19.

Nesse contexto, a ação missionária dos padres jesuítas em relação aos escravos
desafricanizados desempenhava a função de conformação cultural da superestrutura societária colonial.

A propósito, eis como Serafim Leite (1938, t. II, p. 358) descreve o sentido da práxis evangelizadora dos inacianos dirigida aos escravos:

[...] a assistência dos Padres aos negros tinha, sob o aspecto de pacificação, importância capital: tornava-se útil para os negros, porque os instruía, ajudava e consolava; útil aos moradores, porque, andando os negros tranqüilos, a vida no Brasil seguia em paz; útil para o Estado (ou como então se dizia, para a fazenda real), porque na paz prosperava a agricultura e a indústria açucareira, criava-se fonte de riqueza e, com ela, fontes de rendimentos públicos. Não menor era o impacto moral. [...] Os escravos, em contacto com os Jesuítas, não fugiam para os mocambos [quilombos], não furtavam, não se amancebavam, não se embriagavam, e diziam que, se procediam assim, é porque se confessavam com os Jesuítas.

É nessa perspectiva que os Sermões do Rosário revestem-se de sentido pedagógico, ou seja, a pregação de Vieira aos “pretos da Ethyopia” propugnava impor-lhes a concepção de mundo fundada na aceitação da escravidão. Com esse intento, pronunciou-se no XX “Sermão do Rosário”, em que aborda os três elementos de distinção dos senhores em relação aos escravos:

“nome, côr e fortuna”. Os seus argumentos
retóricos aqui revelam claramente
a arte do convencimento.

Todas as idéias estão habilmente encadeadas para demonstrar a similitude entre a condição dos escravos e a de Jesus: a sua origem escrava, a pobreza, o sofrimento e, ainda mais, o pioneirismo na divulgação do cristianismo pelos “pretos”.

Sustentando que em nenhum dos três quesitos (nome, cor e fortuna) havia superioridade dos brancos, começa evocando a origem escrava de Jesus lembra que Maria, ao saber que seria a mãe do Filho de Deus, dissera: “Eis aqui a escrava do Senhor” e “antes de ser mãe se chamou escrava”, portanto, Jesus, ao nascer, “enquanto Filho de seu Pai, é Senhor dos homens; mas enquanto Filho de sua Mãe, quis a mesma Mãe, que fôsse tambem escravo dos mesmos homens”, posto que o  parto, “segundo as leis, não segue a condição do pai, senão da mãe”.

Mais adiante, enaltecendo a condição de Maria, afirma que

“Deus não poz os olhos na majestade e grandeza das senhoras, senão na humildade e baixeza da escrava” 
(Vieira, 1948a, v. XII, p. 91-93 e 97).

Ainda nesse mesmo Sermão, enfatiza que: “quando os Apostólos repartiram
entre si o mundo, coube a S. Matheus a Ethiopia; mas quando lá chegou” o Evangelho já tinha sido divulgado “pelo primeiro Apostolo da sua patria [São Filippe], da mesma nação, da mesma lingua, e da mesma côr que os outros Ethiopes”, o que comprovaria a “antecipada diligencia com que os pretos se adiantaram a pregar a fé e veneração de Christo” (Vieira, 1948a, v. XII,
p. 107).

Logo em seguida, indaga da religião dos próprios portugueses naqueles tempos
bíblicos para responder:

O que se acha em pedras e inscripções antigas é que dedicaram templo a Octaviano Augusto, templo a Trajano, e a todos os deuses [...]. 
E quando os portuguezes, sem se lhes fazerem as faces vermelhas na sua brancura, reconheciam divindade n’estes monstros da ambição e de todos os vícios, os pretos nos seus altares adoravam o verdadeiro Filho de Deus e a verdadeira mãe do mesmo Filho.
(Vieira, 1948a, v. XII, p. 108).

Depois, ao abordar o terceiro elemento, diz:

[...] só resta a ultima razão, ou sem razão,
porque os senhores desprezam os escravos,
que é a vileza e miseria da sua fortuna.
Oh fortuna! [...] Virá tempo, e não tardará
muito, em que esta roda dê volta, e
então se verá, qual é melhor fortuna, se a
vil e desprezada dos escravos ou a nobre e
honrada dos senhores 
(Vieira, 1948a, v. XII, p. 113).

Prosseguindo, buscou assemelhar a “fortuna” do negro à de Lázaro  estabelecendo comparações históricas:

“Digam-me os ricos quem foi êste rico 
e os pobres quem foi êste Lázaro? 
O rico foi o que são hoje os que se chamam senhores, 
e Lázaro foi o que são hoje os pobres escravos” 
(Vieira, 1948, v. XII, p. 114).



Mas, condenando as tiranias, lastimando a situação triste dos oprimidos, quando assim os consolava da desigualdade de sua condição, o fim do orador era incutir-lhes conformidade, tal como analisou J. Lúcio Azevedo (1931, t. 2, p. 285):

"Nem êle podia condenar a escravidão. 
A isso o forçava a coerência, desde que sempre advogara se trouxessem escravos de África, para libertar os índios do obrigatório serviço. 
O Brasil tem o corpo na América e a alma na África, escrevera ele [...] Sem negros não haveria trabalho: era o argumento
da necessidade. O de que por êsse meio se salvavam tantas almas ignorantes de Deus escondia-lhe o horror do acto injusto. O mesmo raciocínio podia convir aos índios, mas êsse não o admitia."

Mas observemos outros elementos da aculturação nos seus Sermões:

“a gente
preta tirada das brenhas da sua Ethyopia,
e passada ao Brazil, conhecera bem quanto
deve a Deus [...], por este que pode parecer
desterro, captiveiro, e desgraça, e não é
senão um milagre, e grande milagre!”
(Vieira, 1945a, v. XI, p. 305).

Já o XXVII Sermão nos põe em contato com uma retórica tocante sobre as duas partes do homem – corpo e alma – cuja finalidade era mostrar que só era escrava uma delas:

“Sois
captivos n’aquella metade exterior e mais
vil de vós mesmos, que é o corpo; porém
na outra metade interior e notabilissima que
é a alma [...], não sois captivos, mas livres”.

Mas a liberdade, como se depreende de suas palavras, deveria tomar um único caminho: o da conversão. Advertindo para o perigo de se “vender a alma ao demonio”, professava que a alma não convertida consistia em pior cativeiro que o do corpo,

“e d’este captiveiro tão difficultoso, e tão
temoroso e tão immenso é que eu vos
prometto a carta de alforria pela devoção
do Rosario da Mãe do mesmo Deus”
(Vieira, 1948b, v. XII, p. 340-341 e 350).


Livres do maior e mais pesado cativeiro, que era o das almas, ainda permaneceriam escravos do corpo. Mas, nesse ponto, deparamo-nos com a argumentação mais impressionante tendente ao conformismo.

Admitindo ser “triste e miserável servir sem esperança de premio em toda a vida, e trabalhar sem esperança de descanço, senão na sepultura” afirma que nisto residia o “bom remedio” pregado pelo Apóstolo Paulo:

“O remedio é que quando servis a vossos
senhores, não os sirvaes como quem serve a
homens, senão como quem serve a Deus [...]
porque Deus vos ha-de pagar o vosso trabalho”
(Vieira, 1948b, v. XII, p. 358).

Mais adiante, evoca Pedro, que depois de falar com os cristãos em geral:

[...] se dilata mais com os escravos e os anima
a supportarem a sua fortuna com toda a
magestade de razões. [...] e logo ajunta as
razões dignas de se darem aos mais nobres
e generosos espiritos. Primeira: porque a
gloria da paciencia é padecer sem culpa
[...] Segunda: porque essa é a graça com
que os homens se fazem mais aceitos a Deus
[...]. Terceira, e verdadeiramente estupenda:
porque n’esse estado em que Deus vos
poz, é a vossa vocação similhante á de seu
Filho, o qual padeceu por nós, deixandovos
o exemplo, que haveis de imitar. [...]


Não compara a vocação dos escravos a outro grau, ou estado da Igreja, senão ao mesmo  Christo. Mais ainda. Não pára aqui o Apostolo; mas acrescenta outra nova e maior prerrogativa dos escravos, declarando por quem padeceu Christo

[...] A Paixão de
Christo teve dois fins: o remedio e o exemplo.
O remedio foi univesal para todos nós,
mas o exemplo não resta duvida S. Pedro
afirmar que foi particularmente para os escravos
[...] e porque? Porque nenhum estado
há entre todos mais apparelhado no que
naturalmente padece, para imitar a
paciencia de Christo e seguir as pisadas de seu exemplo 
(Vieira, 1948b, v. XII, p. 359- 360).

Conclui afirmando que os escravos não deveriam trabalhar de má vontade pois se nessa vida eles serviam aos senhores, acaso não seria uma mudança notável se na outra vida os senhores lhes servissem? Não, responde ele próprio. Isto seria muito pouco porque:

[...] esta grande mudança de fortuna que
digo não há-de ser entre vós e elles, senão
entre vós e Deus. Os que vos hão-de servir
no céo não hão-de ser vossos senhores que
muito pode ser que não vão lá: mas quem
vos há-de servir no céo é o mesmo Deus em
Pessoa. Deus é que vos ha-de servir no céo,
porque vós o serviste na terra 
(Vieira, 1948b, v. XII, p. 362).

Com essa prédica, estaria trocada a fortuna dos escravos: cá servindo aos homens, e lá sendo servidos por Deus. Por essa razão, deveriam trocar o fim de seu trabalho,

“fazendo-o de forçoso a voluntario, 
e servindo a vossos senhores como a Christo”
(Vieira, 1948b, v. XII, p. 365-366).

Difícil encontrar justificativa tão conformista sobre a escravidão no Brasil! Mas notemos também que Vieira escolhe sutilmente as palavras e a ocasião para atingir os colonos escravistas quando assevera que não serão os senhores que servirão os escravos no céu porque “muito pode ser que não  vão lá”.

Cabe-nos indagar, porém, sobre o efeito desta possibilidade transcendental na
soberba e na irracionalidade dos senhores.
Temeriam eles tal “ameaça”? Trocariam a sua condição de mando aqui na sociedade humana pela hipótese de ganhar o paraíso celestial? A resposta, a História já nos deu.

Por isso, constatamos que o pensamento de Vieira (1945c, v. III, p. 14) apresenta aspectos contraditórios. No que diz respeito à escravidão indígena, o pregador admoestava a aristocracia agrária do Maranhão: "deixeis ir livres os que tendes captivos”. Mas, em relação aos negros cativos, como vimos, o pregador jesuíta procurava justificá-la comparando-a ao sofrimento de Jesus.

 
...

Mas, Vieira insiste, essas palavras não são suas. Tudo o que ele diz vem da autoridade máxima, da Bíblia, e ele cita a profecia, continuação do sermão, de que “Virá tempo, diz David, em que os Ethyopes (que sois vós) deixada a gentilidade e a idolatria, se hão-de ajoelhar diante do verdadeiro Deus” e “não baterão as palmas como costumam, mas fazendo oração, levantarão as mãos ao mesmo Deus” (303). Neste momento, como já havia feito no “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Hollanda,” Vieira dá aos seus compatriotas portugueses o lugar lugar mais importante nos desígnios de Deus, dizendo que as duas profecias:

"Cumpriram-se especialmente depois que os portuguezes 
conquistaram a Ethyopia occidental, e estão se cumprindo hoje mais e melhor que em nenhuma outra parte do mundo n’esta da America, aonde trazidos os mesmos Ethyopes em tão innumeravel numero, todos com os joelhos em terra, e com as mãos levantadas ao céo, crêem, confessam, e adoram no Rosario da da Senhora todos os mysterios da Encarnação, Morte e Resurreição do Creador e Redemptor do mundo…" (303).

Então, neste argumento, o que os portugueses fizeram não só já estava previsto na Bíblia, mas também participava de uma necessária melhoria especialmente para os negros. Que importava se, durante a travessia do Atlântico muitos haviam morrido de fome, de doenças contagiosas, de torturas infligidas pelos marinheiros portugueses?

Que diferença fazia, para o grande plano cristão, que muitos morriam de tristeza assim que chegavam ao Brasil? Quem deveria se preocupar se para muitos dos presentes a este sermão a vida de escravo era um constante martírio, tanto físico como espiritual? Estes negros que aqui estavam, Vieira repete, deviam lembrar-se sempre que a própria mãe de Jesus Cristo os havia escolhido especialmente por filhos, e que isso que “pode parecer desterro, captiveiro, e desgraça... não é senão milagre, e grande milagre” (305).

A argumentação do sermão, deste ponto em diante da parte VI, envereda por caminhos ainda mais bíblicos, tentando explicar a arbitrariedade divina, a preferência dos pais divinos por um filho e não o outro. Esaú e Jacó são trazidos à cena, explicando que um é amado, porque é amável, e o outro não é amado, porque não é amável. O ponto aqui é claro: é possível para um pai amar a um filho mais que ao outro, por nenhuma razão aparente. Esta retórica serviria para calar aqueles que talvez quisessem refutar este amor de Deus em face dos tratamentos bárbaros que os donos cristãos destes mesmos escravos lhes infligiam.

Por fim, Vieira repete que os escravos devem sentir-se privilegiados por terem sido escolhidos para serem cristãos. Infelizes são aqueles que permanecem na África, adorando seus falsos deuses, longe do cristianismo, sem a possibilidade da salvação.

Mas, como Vieira rapidamente esclarece, ser cristão exige certos sacrifícios. Já que, como ele havia explicado, o terem sido trazidos da África não foi sacrifício, mas uma grande honra, os negros não devem usar seus trabalhos como desculpa para não seguirem suas obrigações de cristãos e de devotos de Nossa Senhora.

É interessante, neste momento, como Vieira mostra estar consciente do dia a dia dos escravos, porque ele descreve detalhadamente seus trabalhos nas caldeiras do engenho e nos cômodos das casas. Embora o fim último seja para descartar o trabalho como insuficiente razão para não rezar o rosário várias vezes por dia, Vieira usa a oportunidade para dizer aos donos que eles também eram responsáveis pela devoção de seus escravos.

O que não deixa de soar incrível, para um leitor de nosso tempo, é que Vieira presenciou, em pessoa, o trabalho dos escravos. Ele viu e testemunhou seu sofrimento em primeira mão. Mas tudo isso ainda não lhe pareceu suficiente sequer para explicar ou justificar ou perdoar a um escravo que não cumprisse suas obrigações “de cristão” como se ele tivesse tempo e lazer para fazer suas orações várias vezes ao dia.

Isso se confirma no mesmo parágrafo onde, talvez pra evitar que os donos dos escravos pensassem que ele os estava censurando, Vieira volta às citações bíblicas para esclarecer que os negros eram, “filiis Coré” — filhos do Calvário.

Esta parte da gênese dos negros, que já havia sido explicada no início do sermão, agora vai ser expandida dessa maneira: “id est, imitatoribus in loco Calvariae crucifixi” (309). Vieira expande: “Não ha trabalho, nem genero de vida no mundo mais parecido á Cruz e Paixão de Christo, que o vosso em um d’estes engenhos” (309). E, se por acaso alguém pensar em usar esta situação como alavanca para conseguir um melhor tratamento, Vieira arremata:

“Bemaventurados vós se soubereis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina similhança aproveitar e santificar o trabalho!” (309).

Parece-me óbvio que a intenção de Vieira, com esta última parte do parágrafo, torna-se não só clara mas documentada. Como imitadores do crucificado no Calvário, aos negros só lhes resta o papel de crucificados, torturados, vítimas inocentes, e silenciosas.

Aliás, seguindo o fio do pensamento de Vieira, o papel de crucificados não lhes deveria ser pesado, nem difícil, nem doloroso, mas deveriam ser felizes e agradecidos aos donos que lhes propiciavam tal ventura e possibilidade de alcançar a vida eterna.[14]

Que influência o conhecimento da existência dos quilombos que estavam começando a se formar na zona açucareira teria nos escravos deste engenho onde o sermão foi primeiramente proferido?

Vieira, como homem branco, e especialmente como homem branco da mesma classe social de onde vinham os senhores de engenho, certamente sabia da existência dos fugitivos e quilombolas.

Ele, como pregador, sabia muito bem do poder da palavra, e não podia arriscar que os escravos fossem “seduzidos” pela promessa de liberdade, ou de uma vida melhor nos quilombos, se acaso notícia da sua existência chegasse até os engenhos.

Seu sermão dizia aos negros que eles só tinham uma opção de felicidade e de vida eterna, e esta era de cumprir seu papel de filhos de Coré — filhos do Calvário, imitadores de Cristo na hora da sua tortura e da sua morte.

A doçura, o enobrecimento da realização deste papel e desta profecia devia subjugar qualquer outro prazer, qualquer outra alegria porque, se o Cristo “se gosava muito que o crucificassem” (313), como poderiam os negros rejeitar tão alto chamado?

Para eles, a paciência no sofrimento, a aceitação na tortura, e o agradecimento na morte estavam escritos muito antes deles terem vindo ao mundo, e portanto, não haveria nenhuma outra maneira de salvação.

Vieira chega a tal ponto na sua exaltação da sorte e felicidade dos negros escravos que, depois de uma descrição realista dos trabalhos e horrores das caldeiras de um engenho, insinua que ele os inveja: “n’essa triste servidão de miseravel escravo tereis o que eu desejava sendo rei” (318), e arremata que “mais inveja devem ter vossos senhores ás vossas penas, do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho” (320).

Em seu livro as Américas e a civilização, publicado em 1969, o sociólogo Darcy Ribeiro sustenta que o Brasil, em seus inícios, não era uma nação, mas um entreposto de comércio, e “os interesses das castas dominantes queriam que ela continuasse desta maneira, latifundiária e escravocrata, e mais tarde latifundiária e ‘livre,’ mas sempre latifundiária e oligárquica” (208).

Naturalmente, para que os interesses destas castas dominantes se tornassem realidade em face da maioria de subjugados, vários elementos teriam que entrar em jogo. Um deles, o mais óbvio, foi o uso de força. De que outra maneira podemos compreender que navios inteiros de homens e mulheres fortes se deixassem dominar pelos portugueses que os arrebatavam ou compravam na África e os traziam para as terras do Brasil? Este comércio durou pelo menos duzentos e cinqüenta anos. Diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, a importação de africanos foi constante no Brasil até depois de meados do século XIX, e o contingente humano negro em muito ultrapassava o dos brancos.

Mas o uso da força bruta, além de dispendioso, podia representar a perda da mercadoria — ou seja, a morte dos negros. Darcy Ribeiro escreve que aproximadamente cem milhões de africanos foram trazidos para a América em quatrocentos anos, e mesmo levando-se em conta que a metade deles foram mortos durante a travessia (182), podemos afirmar que, em todos os momentos da história do Brasil precedendo a imigração massiva de europeus e asiáticos (especialmente japoneses) no fim do século XIX e começo do século XX, a população negra se constituía na maioria absoluta da população brasileira. Além da força bruta, a dominação dos negros — tantos os escravos como os libertos — se fez através da ideologia.

A igreja católica, como muitos já disseram, se encontrou na ponta de lança dessa ideologia. Não é de se admirar, por exemplo, que somente no dia 5 de maio de 1888 - oito dias antes da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel — o Papa Leo III tornou pública uma carta dando apoio à causa da libertação dos escravos do Brasil. Sobre este ponto, o abolicionista Joaquim Nabuco escreveu que a deserção do clero brasileiro de seu papel de defensor dos oprimidos tinha sido uma vergonha. Nabuco continua que o clero jamais tomou o lado dos escravos, e jamais usou a força da religião para aliviar o sofrimento dos negros (citado em Conrad, 1984, 153).

Neste ponto, é possível discordar de Nabuco, se levarmos em consideração o sermão de Vieira que vimos analisando. Quando Vieira conclama os escravos a não só aceitarem, mas a ficarem felizes com sua cruz, que está fazendo ele senão aliviando o sofrimento dos negros? Ademais, quando Vieira coloca os escravos como filhos diletos de Maria, aqueles que foram predestinados a serem filhos do Calvário, não está ele dando a eles um projeto de vida, um plano de salvação, e um significado para sua existência?

http://www.espacoacademico.com.br/036/36ebueno.htm



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