terça-feira, 30 de agosto de 2011

Os Ataques Neopentecostais às Religiões Afro-brasileiras e aos Símbolos da Herança Africana no Brasil


 Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro
São Paulo, EDUSP, 2007  
Vagner Gonçalves da Silva
 
Este livro é um esforço coletivo de analisar, sob vários pontos de vista, o impacto do crescimento das igrejas neopentecostais, com seus discursos e práticas de ataque e intolerância religiosa, no campo religioso afro-brasileiro e do Cone Sul e em outras áreas da vida social (direitos civis e discriminação por orientação sexual)
 

Vou colocar aqui alguns trechos da perseguição intolerante que os Pentecostais e outras denominações Evangélicas vem praticando, extraído do pdf que posto na íntegra abaixo.

Prefácio
"Verifica-se no Brasil das últimas duas décadas um acirramento dos
ataques das igrejas neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras,
processo extensivo aos países latino-americanos, como Argentina e Uruguai,
para onde tanto essas igrejas como os terreiros de umbanda e
candomblé têm se expandido.

Esse ataque é resultado de vários fatores, entre os quais podemos destacar: a disputa por adeptos de uma mesma origem socioeconômica, o tipo de cruzada proselitista adotada pelas igrejas neopentecostais – com grandes investimentos nos meios de comunicação de massa e o conseqüente crescimento dessas denominações, que arregimentam um número cada vez maior de “soldados de Jesus” – e, do ponto de vista do sistema simbólico, o papel que as entidades afro-brasileiras e suas práticas desempenham na estrutura ritual dessas igrejas como afirmação de uma cosmologia maniqueísta.

Os casos de intolerância, antes apenas episódicos e sem grandes repercussões, hoje se avolumaram e saíram da esfera das relações cotidianas menos visíveis para ganhar visibilidade pública, conforme atestam as freqüentes notícias de jornais que os registram em inúmeros pontos do Brasil.

Igualmente, a reação a estes casos, antes apenas um esboço isolado e tímido de algumas vítimas, agora se faz em termos de processos criminais levados adiante por pessoas físicas ou instituições públicas, como ONGs e até mesmo a Promotoria Pública.

Para que possamos entender melhor a natureza e extensão desses casos de intolerância, foram recolhidas informações sobre eles publicadas na imprensa e na literatura acadêmica dos últimos anos. 

Essas informações, posteriormente, foram sistematizadas e classificadas segundo os seguintes critérios: 
1) ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo;
2) agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; 
3) ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos
ou aos símbolos dessas religiões existentes em tais espaços; 
4) ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 
5) ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos e, finalmente; 
6) as reações públicas (políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras. 

A seguir apresento alguns casos representativos de cada grupo.
1) Os ataques feitos no âmbito das práticas rituais das igrejas neopentecostais
e de seus meios de divulgação e proselitismo têm como ponto de partida uma teologia assentada na idéia de que a causa de grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do
demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas. 

Caberia, aos fiéis, segundo essa visão, dar prosseguimento à obra iniciada por Jesus Cristo de combate a tais demônios: “Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo” (1 Jo. 3:8).

O panteão afro-brasileiro é especialmente alvo deste ataque, sobretudo a linha ou categoria de Exu, que foi associada inicialmente ao diabo cristão e posteriormente aceita nessa condição por uma boa parcela do povo-de-santo, principalmente o da umbanda. 

No interior das igrejas neopentecostais são freqüentes as sessões de exorcismo (ou “descarrego”, conforme denominação da Igreja Universal do Reino de Deus – Iurd) dessas entidades, que são chamadas a incorporar para em seguida serem
desqualificadas e expulsas como forma de libertação espiritual do fiel.

 Dos púlpitos, esse ataque estende-se para os programas religiosos (“Fala que Eu te Escuto”, “Ponto de Luz”, “Pare de Sofrer”, “Show da Fé” etc.) transmitidos pela Rede Record (de propriedade da Iurd) e por outras emissoras que tem seus horários comprados pelas igrejas neopentecostais.

Em muitos desses programas são exibidas “reconstituições de casos reais” ou dramatizações nas quais símbolos e elementos das religiões afro-brasileiras são retratados como meios espirituais para a obtenção unicamente de malefícios: morte de inimigos, disseminação de doenças, separação de casais ou amarração amorosa, desavença na família etc. 

São comuns nesses programas os testemunhos de conversão dados por pessoas que se apresentam como antigos freqüentadores de terreiros, que são entrevistados pelo pastor e “confessam” os malefícios que teriam sido feitos com ajuda das entidades afro-brasileiras (chamadas de “encostos”). 

Os testemunhos mais explorados são os dos que se apresentam como ex-sacerdotes das religiões afro-brasileiras, chamados de “ex-pais-de-encosto” que explicam detalhadamente como faziam os despachos e sua intenção malévola. 

A vasta rede de comunicação dessas igrejas inclui ainda programas de rádio, sites na Internet e material de divulgação religiosa (livros, jornais, revistas e folhetos), como a Folha Universal e a revista Plenitude, ambas da Iurd, e os livros best-sellers Orixás, Caboclos & Guias; Deuses ou Demônios?, do bispo Edir Macedo (Iurd), e Espiritismo - A Magia do Engano, do missionário R. R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus).

2) Insuflados por essa crença, os membros das igrejas neopentecostais
muitas vezes invadem terreiros visando a destruir altares, a quebrar
imagens e a “exorcizar” seus freqüentadores, o que geralmente termina
em agressão física. 

No Rio de Janeiro, umbandistas do Centro Espírita Irmãos Frei da Luz foram agredidos com pedradas pelos freqüentadores de uma IURD situada ao lado desse Centro, na Abolição . 

Uma adepta da Tenda Espírita Antônio de Angola, no bairro do Irajá, foi mantida
por dois dias em cárcere privado numa igreja evangélica em Duque de Caxias, com o objetivo de que esta renunciasse à sua crença e se convertesse ao evangelismo .

Em Salvador, tida como a “capital da macumbaria” ou a “Sodoma e Gamorra da magia negra” pelos neopentecostais, uma iniciada no candomblé teve sua casa, no bairro de Tancredo Neves, invadida por trinta adeptos da Igreja Internacional da Graça de Deus, que jogaram sal grosso e enxofre na direção das pessoas ali reunidas durante uma cerimônia religiosa . 

Essas substâncias também são atiradas em automóveis  que possuem colar de contas (guias) pendurado no espelho retrovisor .

Em São Luis, capital maranhense, alguns fiéis da Assembléia de Deus residentes no bairro acusaram os chefes do Terreiro do Justino, localizado na Vila Embratel, de seqüestro de um bebê, filho de um casal de freqüentadores da igreja que residia na vizinhança. Acreditavam que o bebê teria sido raptado para ser sacrificado nos ritos do terreiro .

Acionaram a polícia, que mesmo sem uma ordem judicial revistou as instalações do templo, incluindo os quartos sagrados interditados aos não-iniciados. Até a geladeira da casa e os carros estacionados no quintal foram alvos da busca policial. A investigação só não foi levada adiante porque os reais seqüestradores da criança foram capturados. O terreiro, fundado há 104 anos, é um dos mais antigos da cidade e vem sofrendo pressões por parte dos evangélicos do bairro para que seja transferido dali . 

Esta é, aliás, uma estratégia dos pastores, que ao se instalarem nos bairros identificam os terreiros da região e estabelecem prazos para fechá-los . No bairro Engenho Velho da Federação, em Salvador, onde existem cerca de dezenove terreiros de candomblé (famosos por sua tradição, como a Casa Branca e o Gantois), o confronto vem se acirrando. 

Para demonstrar sua força, as igrejas evangélicas organizaram uma passeata para intimidar os seguidores dos “demônios” naquele bairro.

Em resposta, o povo-de-santo saiu às ruas vestindo roupas brancas, cor associada à paz e a Oxalá, o orixá da criação, segundo o candomblé. 

Outra manifestação desse tipo de ataque é dificultar, utilizando vários meios, a realização das atividades rituais dos terreiros. Uma mãede-santo da Cidade Tiradentes em São Paulo reclamou de um carro de som, contratado por uma igreja neopentecostal das imediações, que parava ou circulava insistentemente em frente ao seu terreiro para anunciar em alto volume as “sessões de descarrego” realizadas na referida igreja.

3) Quando as atividades religiosas (festas de orixá, oferendas, procissões
etc.) são feitas em lugares públicos (praias, matas, cachoeiras, ruas, largos e ginásios), os adeptos ficam mais expostos a ataques, que englobam desde a simples distribuição aos presentes de panfletos com propaganda contra esses cultos até a tentativa de interrupção forçada dos rituais. 

Durante uma festa de Iemanjá ocorrida na praia do Leme, Rio de Janeiro, neopentecostais pregaram contra a cerimônia com auxílio de alto-falantes e destruíram os presentes ofertados à entidade, associada ao mar. 

O mesmo ocorreu durante uma festa de erês (entidades  infantis) realizada na Quinta da Boa Vista, quando os neopentecostais quebraram imagens e queimaram roupas de santo.

Símbolos das religiões afro-brasileiras colocados em espaços públicos também podem ser atacados. A revitalização do Dique do Tororó, que incluiu a instalação de esculturas dos orixás pela prefeitura de Salvador, rendeu uma série de críticas das igrejas evangélicas, que condenaram esse ato de “enaltecimento de uma religião diabólica”, “associada ao mal”, que precisaria ser “exorcizada”, segundo sua óptica, e não homenageada pelo poder público. 

Argumentando que as imagens dos orixás, mais do que símbolos religiosos específicos, fazem parte da cultura baiana, o poder público assim justificou sua ação. De fato, esculturas e imagens retratando os deuses afro-brasileiros estão dispersas em muitos outros locais da capital baiana, como ruas, praças e edifícios, sendo seus nomes usados inclusive oficialmente para identificar alguns desses locais e estabelecimentos comerciais e culturais. 

Há, entretanto, uma forte oposição a isto. A diretora de uma escola, no bairro de Stella Maris, teve de mandar apagar a figura do orixá Ogum que havia em um painel artístico situado naquele edifício escolar por pressão dos pais evangélicos cujos filhos estudavam ali. 

Em São Paulo, agressões à estátua de Iemanjá, na Praia Grande, como tentativa de depredação, têm sido registradas.

A intolerância religiosa pode se manifestar inclusive no compartilhamento de locais ou transportes públicos, como no caso de uma mulher que por trajar um turbante branco, típico dessas religiões, foi expulsa do ônibus em que viajava na zona norte da cidade carioca.

4) Símbolos da herança africana no Brasil, mesmo que não sejam exatamente religiosos, mas de alguma forma aludam às religiões afrobrasileiras, também são estigmatizados e combatidos. 

No Rio de Janeiro, por influência das igrejas neopentecostais, houve um esvaziamento da bateria mirim da “Toca o Bonde – Usina de Gente”, uma organização não governamental que ensina música às crianças e jovens carentes
moradores em algumas comunidades da região de Santa Teresa. Os pais evangélicos retiraram seus filhos da ONG alegando que o samba está vinculado ao “culto do demônio”.Nessa óptica, escola de samba é,
portanto, “escola do capeta”.

Uma outra face da desqualificação de tais símbolos é, paradoxalmente, a sua “incorporação” nas práticas evangélicas, porém dissociando-os de sua relação com as religiões afro-brasileiras. 

Assim, surge a capoeira de Cristo, evangélica ou gospel, em cujas letras não há referências aos orixás ou santos católicos. 

O I Encontro Nacional de Capoeiristas Evangélicos aconteceu em 2005, em Goiânia, e o tema escolhido foi “Deus – o verdadeiro ancestral da capoeira”. 

Nesse contexto, há uma refutação da contribuição da ancestralidade ou da espiritualidade africana na formação da capoeira, como se vê na menção à “Deus” como o “verdadeiro ancestral” dessa prática que, na sua origem, esteve intimamente relacionada ao candomblé. 

Outro exemplo é o “acarajé do Senhor”, feito por mulheres evangélicas que querem dissociar esse alimento das religiões afro-brasileiras (o acarajé é uma
comida votiva de Iansã) e da imagem das baianas que tradicionalmente o
comercializam vestidas com suas saias brancas e colares de conta (guias),
uma indumentária típica dos terreiros e conhecida nacionalmente.

Com a recente decisão do Ministério da Educação pela inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira” no currículo oficial da rede de ensino18, livros didáticos abordando o assunto começam a ser produzidos.

Sendo as religiões afro-brasileiras parte dessa história e cultura, suas características têm sido abordadas de forma não sectária ou proselitista, como convém a um material destinado ao ensino laico, humanista e de difusão da tolerância à diversidade cultural. 

Entretanto, colocar nos livros escolares as religiões de origem africana ao lado de religiões hegemônicas, como o cristianismo, dando-lhes o mesmo espaço e legitimidade destas últimas, têm gerado, por si só, protestos. 

Foi o que ocorreu com uma coleção de livros didáticos destinada ao ensino fundamental, lançada por uma editora de São Paulo. 

No volume indicado para a segunda série, no capítulo “Nossas Raízes Africanas”, a autora trata da formação das religiões afro-brasileiras, inclusive com exercícios pedindo para as crianças pesquisarem sobre a história dos orixás. 

Uma coordenadora pedagógica evangélica de Belfort Roxo, Rio de Janeiro, protestou junto à editora alegando que o livro fazia apologia das religiões afro-brasileiras e que não seria adotado em sua escola, onde a maioria dos alunos e professores, segundo ela, era evangélica. 

A mesma coleção também gerou protesto na Câmara da cidade de Pato Branco, Paraná, onde um vereador e pastor evangélico denominou a obra de “livro do demônio” e pediu a cassação da coleção19. 

Vale lembrar que o referido material didático foi avaliado e
obteve parecer muito favorável, sendo recomendado pelo Guia do Plano
Nacional do Livro Didático (PNLD-2004)20.

5) Como se vê neste último caso, com a crescente eleição de candidatos
evangélicos ou de aliados a tais igrejas, a batalha contra outras denominações religiosas também se reflete ou se ampara no campo da representação política. 

Aproveitando-se do poder decorrente desse campo, políticos evangélicos vêm articulando ações antagônicas ao desenvolvimento das religiões afro-brasileiras. 

No Rio Grande do Sul, por pressão desses políticos e com o apoio das sociedades protetoras dos animais, o Código Estadual de Proteção aos Animais tem sido acionado na tentativa de coibir os sacrifícios rituais do candomblé. 

Um parágrafo específico do Código, que não foi aprovado por pressão dos religiosos afro-brasileiros, vedava a realização de cerimônia religiosa que envolvesse a morte de animais. Ainda assim, com base na interpretação do Código tem sido possível ações judiciais contra sacerdotes afro-brasileiros, como
ocorreu com a mãe-de-santo Gissele Maria Monteiro da Silva, de Rio
Grande, condenada a trinta dias de prisão por realizar sacrifícios de
animais em seu terreiro.

6) Diante desses ataques, as reações dos religiosos afro-brasileiros e de seus aliados que eram quase insignificantes há duas décadas têm crescido, mas ainda estão muito longe de representarem um movimento articulado que faça frente à organização dos evangélicos, que cada vez mais se empenham em ocupar espaços estratégicos nos meios de comunicação e nos poderes legislativo e executivo. 

Inicialmente essa reação se fez em forma de protestos como o do deputado estadual e umbandista Átila Nunes, que em 1981 solicitou ao então ministro da
justiça Ibrahim Abi Ackel providências sobre o tema.

No final dessa mesma década, Edir Macedo foi processado pelo Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda e dos Cultos Afro-brasileiros por vilipêndio
a culto religioso, calúnia e difamação, o que ocasionou uma breve contenção na intensidade dos ataques nesse período. 

A trégua durou pouco, pois em meados dos anos de 1990 a agressão a uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, feita por um bispo da Iurd durante um
programa televisivo, fato que ficou conhecido como o “chute na santa”,
motivou uma reação de vários segmentos da sociedade brasileira, colocando
essa igreja neopentecostal numa situação difícil.

O episódio foi duplamente exemplar. Primeiro, mostrou que quando os ataques da Iurd se dirigem diretamente aos símbolos de uma religião majoritária e hegemônica, como o catolicismo, sua eficácia é reduzida. O que não ocorre com os ataques às religiões afro-brasileiras, que em geral têm se mostrado eficazes tanto na conversão de adeptos como no comprometimento da imagem pública dessa religiosidade. 

Segundo, mostrou aos adeptos afro-brasileiros a necessidade de reagir de forma cada vez mais organizada para tentar preservar a relativa aceitação e legitimidade conquistadas a duras penas perante a sociedade brasileira.

Assim, nos últimos cinco anos, alguns movimentos de defesa das
religiões afro-brasileiras têm sido criados e, no âmbito jurídico, ações
legais têm sido impetradas pelos babalorixás e ialorixás contra pastores
e/ou suas igrejas.

A Bahia é o Estado onde existe atualmente um número maior de casos registrados de reação. Segundo levantamentos publicados por um jornal, nos últimos sete anos foram registrados quase duzentas reclamações e processos, os quais englobam, entre outras, ações por difamação contra sacerdotes evangélicos e seus seguidores (e também contra alguns padres) por afirmarem publicamente serem as religiões afro-brasileiras demoníacas, distribuírem folhetos com esse conteúdo (geralmente em festas públicas de orixás), apresentarem programas na televisão vilipendiando símbolos dessas religiões ou atacarem terreiros e seus membros. 

Nesses processos, o Ministério Público tem tido uma atuação importante, embora a lentidão das varas judiciais criminais, para onde os processos são enviados, desestimule uma ação sistemática por parte das vítimas. 

Além disso, estas, em geral, não possuem conhecimento suficiente dos mecanismos de funcionamento do poder judiciário para neles atuarem de forma mais incisiva. Considerando tais dificuldades e na tentativa de criar fóruns de debate e rotinas mais ágeis para o encaminhamento desses processos, entidades de defesa dos direitos civis estão propondo inclusive a criação de uma vara específica para os casos de discriminação racial e religiosa.

Apesar das dificuldades, essas ações jurídicas começam a dar resultados
favoráveis aos adeptos das religiões afro-brasileiras. As igrejas evangélicas responsáveis pelos programas considerados ofensivos às religiões afro-brasileiras, e as redes de televisão que os exibem, estão sendo notificadas.

Na Bahia há inúmeros processos em andamento, alguns deles com sentenças outorgadas. O programa “Ponto de Luz”, da Igreja Universal do Reino de Deus, teve seu horário de exibição alterado (reclassificação etária), ficando proibidas as referências pejorativas às religiões afro-brasileiras.

Em São Paulo, as redes de televisão (Record, Rede Mulher e outras) que apresentam programas ofensivos (“Sessão Descarrego”, “Mistérios” etc.) foram condenadas a exibir em sua programação o direito de resposta dos representantes das religiões afro-brasileiras.

O caso mais emblemático de reação é o da mãe Gilda (Gildásia dos Santos e Santos), do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, Bahia, que em 1992 participou em Brasília de um protesto contra o governo Collor, tendo sido fotografada pela revista Veja ao lado de um despacho. Posteriormente, essa imagem foi usada numa edição de 1999 da Folha Universal (publicação da Iurd) ao lado da manchete “Macumbeiros Charlatões Lesam a Bolsa e a Vida dos Clientes – O Mercado da Enganação Cresce no Brasil, mas o Procon Está de Olho”. 

Este fato e a invasão de seu terreiro por membros da Igreja Deus é Amor, que tentaram “exorcizá-la”, levaram a mãe-de-santo a decidir pela ação judicial contra seus agressores e difamadores. Mãe Gilda faleceu em seguida, aos 65 anos, de um infarto fulminante, em conseqüência, segundo sua família, desses  acontecimentos, que a abalaram profundamente. 

Em 2004, a Justiça condenou a Igreja Universal e sua gráfica a indenizar a família da ialorixá em 1,372 milhões de Reais pelo uso indevido de sua imagem (um Real por cada exemplar do jornal publicado com a matéria)34. 

O caráter emblemático deste caso levou nesse mesmo ano a Câmara de Vereadores de Salvador a transformar a data de falecimento da ialorixá, 21.1.2000, em “Dia Municipal de Combate à Intolerância Religiosa”.

O livro Orixás, Caboclos & Guias – Deuses ou Demônios? é outra publicação
que vem sendo questionada na Justiça. Na Bahia, a Procuradoria Estadual enviou à Procuradoria da República um pedido para retirar de circulação o livro considerando seu caráter ofensivo às religiões afrobrasileiras.

No Rio de Janeiro, a Justiça condenou em 2004 a Iurd e a Editora Gráfica Universal, responsável pela publicação do livro, a pagar 120 mil Reais pelo uso indevido da imagem do adolescente Ricardo Navarro, que aparece numa foto, na época com quatro anos de idade, tocando atabaque no terreiro de sua avó, a ialorixá Palmira de Iansã, em Mesquita. Segundo a legenda da foto: “Essas crianças, por terem sido envolvidas com os orixás, certamente não terão boas notas na escola e serão filhos ‘problemas’ na adolescência”. 

A ialorixá já havia processado a editora há 10 anos pelo uso da imagem de três crianças em seu terreiro, que aparece no livro e no jornal Folha Universal para ilustrar uma matéria intitulada “Filhos do Demônio”. A gráfica foi condenada a pagar vinte salários mínimos para as famílias das três crianças. Uma dessas crianças, hoje adolescente, lembra que na época foi alvo de chacota na escola: “Eu fui chamada de macumbeira, que vivia em religião de demônio”.

Percebendo a necessidade de se contrapor e se defender dos ataques
neopentecostais, o povo de santo tem procurado se articular e superar as divergências existentes entre as várias denominações religiosas (candomblé e umbanda, por exemplo) e entre os diferentes modelos de culto existentes no interior destas (candomblé queto e angola, por exemplo). Historicamente essas religiões têm se desenvolvido muito mais por dissidências ou contraposições do que por aglutinação em torno de entidades de representação coletiva. O modelo de organização federativa dos centros espíritas, por exemplo, foi adotado com relativo sucesso pelos terreiros de umbanda, mas pouca influência teve entre os de candomblé.

Mesmo assim, algumas entidades federativas têm procurado encaminhar posições e estabelecer interlocução com outros agentes do poder público,
movimento negro, organizações não governamentais etc.

Na Bahia, o Movimento Contra a Intolerância Religiosa, iniciado em 2000, teve como articuladores vários desses agentes, como a Federação Baiana de Culto Afro, o Centro de Estudos Afro-Orientais (da Universidade Federal da Bahia), o Programa Egbé – Territórios Negros (desenvolvido pela Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço), e vem aglutinando outras instituições afins. 

Em São Paulo, o Instituto da Tradição e Cultura Afro-brasileira (Intecab) e a Comissão de Assuntos Religiosos Afrodescendentes também têm buscado articular a comunidade religiosa, organizando passeatas e atos de protesto contra a descriminação religiosa e alertando sobre a necessidade de eleger políticos comprometidos com a causa religiosa afro-brasileira.

O Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo e a União das Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil também vem atuando por meio de processos
judiciais contra pastores evangélicos38. No Rio Grande do Sul, a Comissão
de Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (CDRAB), organizada em 2002, e as federações de cultos da capital gaúcha vêm se articulando tanto para eleger candidatos da comunidade religiosa, como para reagir à ação de políticos evangélicos, como no caso citado acima de tentativa de proibição de sacrifícios de animais nos terreiros.

Outra estratégia de resistência dos afro-brasileiros tem sido buscar apoio no movimento ecumênico, considerando que o ataque neopentecostal também se dirige a outras religiões, principalmente ao catolicismo.

Além do já comentado episódio do “chute na santa”, manifestações públicas de fé católica também têm sido alvo de ataques, como os tumultos provocados por fiéis neopentecostais durante as procissões católicas, como a do Senhor Morto, na Sexta-feira da Paixão39, ou nas romarias populares, como a de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte. 

Sem contar que o próprio papa tem sido visto como “o representante do demônio na terra” padres e bispos geralmente são apontados como praticantes de pedofilia e homoerotismo. 

Por meio desse movimento ecumênico, os cultos afro-brasileiros podem, inclusive, encontrar a solidariedade de igrejas evangélicas que discordam e condenam os ataques realizados pelas denominações neopentecostais mais intolerantes.

Enfim, o desenvolvimento das religiões afro-brasileiras foi marcado pela necessidade de criar estratégias de sobrevivência e diálogo frente às condições adversas. Foram perseguidas pela Igreja Católica ao longo de quatro séculos, pelo Estado republicano, sobretudo na primeira metade do século XX, quando este se valeu de órgãos de repressão policial e de serviços de controle social e higiene mental, e, finalmente, pelas elites sociais num misto de desprezo e fascínio pelo exotismo que sempre esteve associado às manifestações culturais dos africanos e seus descendentes no Brasil. 

Entretanto, desde pelo menos a década de 1960, quando essas religiões conquistaram relativa legitimidade nos centros urbanos, resultado dos movimentos de renovação cultural e de conscientização política, da aliança com membros da classe média, acadêmicos e artistas, entre outros fatores, não se tinha notícia da formação de agentes antagônicos tão empenhados na tentativa de sua desqualificação. 

Portanto, ainda que incipiente, a união de religiosos afro-brasileiros, movimento negro, ONGs, acadêmicos, pesquisadores, políticos, advogados, promotores públicos, entre outros, parece apostar mais uma vez na capacidade de resistência e reação dessas religiões contra um assédio proporcionalmente muito mais eficaz e, a julgar por seu estado atual e crescimento numérico, duradouro.

* * *
para ler o restante acessar o pdf



outro arquivo de Vagner Gonçalves da Silva que complementa o acima





2 comentários:

  1. Fico contente em ver que existe uma reação a essas discriminações.
    Tenho netos e filhos que seguem com dedicação a religião Umbandista.

    Quero que eles tenham liberdade para suas práticas em segurança.

    Muito interessante a postagem.
    Parabéns e obrigada.

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  2. Há muito trabalho ainda, a intolerância e o preconceito são enormes...

    bjs

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