segunda-feira, 18 de julho de 2011

"A Marcha dos Pingüins" e a origem da moral

CONTARDO CALLIGARIS

Fui assistir à "Marcha dos Pingüins", de Luc Jacquet, em
companhia de crianças pequenas. Um compromisso foi
necessário: eu me contentei com a versão dublada e as
crianças toparam a sessão das dez. Antevia um desastre: elas
dormiriam direto e eu não agüentaria a pieguice.

As previsões estavam erradas. As crianças ficaram
acordadíssimas e saíram do cinema pensativas, sem pedir
nenhum pingüim de pelúcia. Isso porque o filme, justamente,
não é nada piegas. Ele é um grande drama.

A vida amorosa e reprodutiva dos pingüins cumpre uma lei
férrea e cruel, ano após ano: percursos intermináveis, fome,
meses de imobilidade gelada chocando um único ovo e por
aí vai.

Nenhuma semelhança conosco: eles sobreviveram
obedecendo a uma necessidade absoluta e impiedosa,
enquanto a gente sobreviveu graças à variedade plástica de
nossa escolhas amorosas e de nossos comportamentos
sexuais e reprodutivos.

Pensei nos pingüins que aparecem misteriosamente em
nossas praias. O Ibama faz um esforço danado para devolvê-los
a seu habitat natural; são levados de volta, de avião, até à
Antártida ou à Patagônia. Mas será que alguém lhes pergunta
o que eles querem? Há uma séria possibilidade que eles
estejam pedindo asilo político na zona sul carioca. Depois de
ter visto o filme de Jacquet, eu não hesitaria a lhes
reconhecer esse direito.

Apesar da distância entre nossa vida amorosa e a dos
pingüins, nos EUA, alguns grupos conservadores
propuseram a conduta dos pingüins como protótipo de
monogamia e de dedicação à família. Algo assim: "Você se
queixa porque os filhos e a família dão trabalho? Você quer
mais prazer na sua vida? Você quer abortar? Olhe para os
pingüins e arrepende-se". Fato surpreendente, o argumento
funciona. Também graças à dramatização que dá voz às
"personagens" da história, podemos simpatizar com os
pingüins a ponto de considerá-los como semelhantes que, no
caso, seriam mais morais que a gente.

Na história da cultura, aconteceu com freqüência que alguém
apontasse nos animais qualidades exemplares para nós.
O filósofo David Hume, num apêndice de sua "Investigação
Sobre os Princípios da Moral" (1751), ao querer mostrar que
nossos sentimentos morais são, de uma certa forma,
"naturais", invoca como exemplo a "benevolência" dos
animais (de fato, os animais "benevolentes" existem mais
nas fábulas do que na realidade, mas não é isso que importa).
O que Hume chama "benevolência" é a capacidade de sentir
simpatia pelos semelhantes. Para quase todos os filósofos
britânicos do século 17 e 18, essa capacidade é o fundamento
da moralidade: afinal, se soubermos nos colocar no lugar dos
outros, nosso comportamento terá uma boa chance de ser
moralmente aceitável.

Naquela época, ingleses e escoceses debateram como nunca
sobre a origem dos sentimentos morais. Havia quem
pensasse que eles fossem aprendidos, derivados da
experiência (John Locke); havia os que pensavam que
fossem colocados por Deus no nosso âmago desde o
nascimento (Shaftesbury) e havia os que, como Hume e
Adam Smith, ficavam sabiamente em cima do muro. Para
todos, o núcleo da moral era a capacidade de simpatizar com
o outro e, portanto, de querer seu bem. A questão discutida
era: "De onde vem essa simpatia que nos torna morais?".

A psicologia pode contribuir (tardiamente) a esse debate.





Existe um transtorno grave, chamado transitivismo, no qual
o sujeito perde a noção de seus limites e de sua
individualidade e se confunde com os outros ou mesmo com
objetos inanimados ao seu redor. O transitivismo, na medida
certa, é também uma disposição crucial na constituição da
subjetividade normal.

Por exemplo, mães e pais conhecem um estranho fenômeno
que acontece nos primeiros anos de vida de qualquer criança:
na brincadeira, eis que um amiguinho se machuca e a criança
que assiste à cena começa a chorar como se a vítima fosse
ela. Os adultos perguntam por quê e a criança aponta, em seu
corpo, o lugar em que o outro se feriu.

Não se trata de uma compaixão generosa que seria congênita
nas crianças. Acontece que o sujeito humano se constrói à
força de identificações com os outros. Nos primeiros anos de
vida, a capacidade de me colocar no lugar do semelhante me
ajuda a responder à pergunta "Quem eu poderia vir a ser?".

Mais tarde, a experiência dos outros continua nos
enriquecendo tanto quanto a nossa, pois levamos conosco,
dentro de nós, os semelhantes que encontramos ao longo da
vida.

Talvez seja esse transitivismo, básico e normal, que esteja na
origem da simpatia que funda nossa moralidade. Ele nos é
tão necessário que não paramos de estender o campo dos
semelhantes com os quais possamos nos identificar.

Inventamos e cultivamos ficções para viver a experiência
não só dos outros reais, mas também de um exército de
personagens imaginárias. Na mesma linha, descobrimos a
fidelidade nos cachorros, a laboriosidade nas formigas, a
tranqüilidade nas montanhas e, depois do filme de Jacquet, a
abnegação nos pingüins.

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